v. 29 n. 2 (2022): Psicanálise Brasileira
Ao propor o número temático Psicanálise Brasileira, procuramos trazer ao nosso leitor um conjunto de artigos capaz de expressar o percurso e a conjuntura atual da psicanálise exercida em nosso país, explicitando as múltiplas facetas que compõem a sua identidade, assim como suas particularidades e generalidades. Partimos de uma interrogação: existe uma Psicanálise Brasileira? Seria uma psicanálise que não se restringe à questão territorial, abarcando o âmbito dos sistemas de significações da cultura em sua totalidade, através dos quais grupos humanos encontram-se e mantém a sua coesão. Frente a isso, vislumbramos um campo relacional entre a cultura brasileira e a cultura psicanalítica desenvolvida no Brasil, tratando não somente de suas relações como também das intersecções e tensões. O que define culturalmente ser brasileiro? Assim como não há dúvida de que algo nos une em torno de uma representação homogênea, reforçando a crença de unidade, de identidade e de indivisibilidade da nação e do povo brasileiro, parece que algo também nos separa drasticamente. Neste sentido, podemos falar de Brasil? Ou de muitos “brasis”, como se refere Darcy Ribeiro (1995)? Seremos, como ele declara, “(...) A doçura mais terna e a crueldade mais atroz [que] aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos”? De alguma forma, estamos condenados a andar como eternos Severinos em busca da vida - ou fuga da morte - ou seremos defensores ferrenhos de nossos latifúndios culturais e territoriais? Ao levantar estas questões, não pretendemos buscar respostas, mas considerar a contextualização do que existe de específico na psicanálise exercida no Brasil para pensar a cultura psicanalítica do e no Brasil.
A psicanálise chegou até nós a partir de construções intelectuais europeias transmitidas por uma série de precursores em SP, RS e RJ. Passadas muitas décadas, torna-se importante perguntar: em que meios ela floresceu e quais desenvolvimentos não foram alcançados? Há uma transculturação ou aculturação inerente ao processo de construção de novos elementos teóricos? Poderia este processo ser comparado ao apelo do manifesto antropofágico? Considerando que o sujeito na contemporaneidade é o sujeito em seu contexto, utilizamos conhecimento, técnica e modelos de outros locais do mundo para significar o contexto no qual estamos inseridos? Em que medida? Poderíamos pensar que Macunaíma seria um simulacro da ideia de um povo brasileiro, “temperado com bordeaux”, como refere Denilson Baniwa, artista plástico e curador da exposição ReAntropofagia, resgatando o apagamento das matrizes identitárias de povos originários brasileiros? Como (ou o quanto) a Psicanálise brasileira integra o contexto originário do Brasil? Repetimos os padrões de acesso aos serviços dos quais a maior parte da sociedade é alijada ou mantemos as especificidades que definiram sua difusão e o acesso à psicanálise? Qual a participação da história e da cultura das sociedades psicanalíticas brasileiras nos caminhos tomados? Quais vertentes teóricas ou modelos identificatórios que cada sociedade mantém e como é o processo de transformação? Quais autores nos acompanham, suas inspirações criativas e como se expandem, ou não, no território nacional e internacional da psicanálise? Como quarto eixo do processo de formação, qual a repercussão da participação institucional na atual formação de novos psicanalistas? Quais as linhas teóricas e os modelos de prática analítica que são ensinados e buscados atualmente nos institutos? Qual a distância entre o ideal buscado e a realidade possível?
A FEBRAPSI (2008), buscando uma corporeidade federativa, surgiu em 1967 como Associação Brasileira de Psicanálise. Inúmeros solavancos foram enfrentados neste caminho. Passados 40 anos, surgiu a Diretoria de Comunidade e Cultura. Como poderíamos compreender esta aquisição tardia? Quais as perspectivas e interfaces desta ampliação, que desde Freud era anunciada como um desenvolvimento previsto? Quais os avanços, limites e riscos de tal prática?
Por ser um tema em busca de construção, sugerimos estes questionamentos como estímulo e convidamos os colegas a nos contarem sobre o seu ofício psicanalítico enquanto brasileiros. Vamos examinar e relatar nossa trajetória, abordando o modo como fomos, estamos sendo e seremos formados em psicanálise no Brasil. Vamos juntos compor uma aquarela psicanalítica brasileira, ressaltando nossos tons, ritmos e notas, e assim contribuir para a integração das variáveis constituintes da psicanálise que exercemos em suas diversas expressões, identidades, processos e desenvolvimentos teóricos.